Fui chamado três vezes de ingênuo, na última semana. Três pessoas diferentes. Três ocasiões distintas. Os motivos? Diversos.
Da primeira vez não dei a mínima. Sorri, até. Da segunda, já me senti um pouco incomodado. Da terceira, porém, confesso: quase me ofendi.
— Como assim, ingênuo? — protestei.
Fui para casa, tentando evitar pensar naquilo.
“Ingênuo.”
As palavras são seres vivos. Raposas se esgueirando pelo terreno. Selvagens. Outras, mais dóceis, são como galinhas as quais podemos servir um pouco de comida.
É preciso, porém, tomar cuidado. Quando mais de uma pessoa se refere a nós com uma palavra selvagem como “ingênuo”, é recomendável analisar a situação.
Afinal, quando uma raposa, um ser sempre tão esperto, aparece muito, é porque deve trazer alguma verdade.
Foi por isso, não tenho dúvidas, que aquela raposa ficou ali, a cercear minha mente.
De quando em quando ela aparecia por de trás da cerca e sussurrava:
— Ingênuo…
O problema é que não sabemos, de fato, o que significam as raposas. Até tentamos não olhar para elas, mas fracassamos.
Eu, pelo menos, sou um sujeito curioso e, ao dar milho às galinhas, acabo olhando para a cerca, e ouço:
— Ingênuo…
Não há, então, outro jeito. Preciso deixar de dar ração às galinhas para ir até o curral. Não gosto. Em minha terra, à beira do limite do sítio, há seres estranhos. É perigoso se aproximar do limiar.
Mas vá lá! A raposa da vez não parecia tão perigosa.
Desse modo, fui até um dicionário, pesquisar o significado da palavra INGÊNUO. Um não. Três.
Essa mania de ver as palavras como seres vivos, com coração e veias, às vezes me deixa um pouco cabisbaixo.
Desta vez, entretanto, não foi o caso:
* Aulete: que não tem malícia (olhar ingênuo); INOCENTE; PURO. Filho de escravo, que já nasceu livre.
* Michaelis: Que é puro e inocente ou que transmite pureza e inocência. Diz-se de ou filho de escrava nascido livre, depois da lei da emancipação.
* Priberam: sem malícia; sem afetação = INOCENTE, NATURAL, SIMPLES. Filho de escrava, nascido depois da lei de emancipação.
Ora, a raposinha não era tão má. Simpática, inclusive.
Sou mesmo descendente de escravos. Até onde consigo, sou livre.
Ser “inocente” e “puro”, por outro lado, não é de todo ruim. É algo essencial para que não abandonemos nossos sonhos.
Só discordo da parte “sem malícia”. Isso eu tenho. De sobra.
Aquela raposinha e eu já fizemos amizade. Tenho um grande carinho por ela.
Da próxima vez que alguém a jogar contra mim — ingênuo — estarei pronto. Vou abraçar ela com prazer.